CONSEQUÊNCIAS FILOSÓFICAS DA TEORIA DOS QUANTA.

Interessando de perto a problemas fundamentais, a teoria dos quanta,
em sua forma recente, tem tido uma influência marcante sobre certos
capítulos da Filosofia.
A razão profunda desta perturbação, foi a introdução do “descontinuo”
na ciência do movimento, ou seja, numa ciência que até agora era,
essencialmente, uma teoria do “continuo”.
As diversas conseqüências foram admitidas em decorrência de uma
penetrante análise partindo da premissa do sentido que se deve dar aos
termos “conhecimento do mundo físico e àquele do mundo atômico ou
nuclear”.
De um modo geral, a sanção da experiência é capital para toda a teoria
física; para que a hipótese que ela propõe possa ser considerado como
descritora de um fenômeno natural, é preciso que os resultados que se
obtêm estejam de acordo com os resultados das medidas
experimentais.
O problema da medida de grandezas físicas está colocado nos
primórdios da mecânica quântica e seu exame atento causou a
modificação de um certo número de nossas antigas concepções.
Mede-se uma grandeza ligada a um sistema físico em evolução,
observando a reação dele sobre “um aparelho de medir”.
Deve pois, haver, necessariamente, interação entre o sistema físico e
este aparelho, sem o que este último não fornecerá nenhuma
indicação.
Fica claro então que o processo, em si, de medir introduz uma
perturbação no fenômeno observado, perturbação geralmente fraca e
que não influi sensivelmente sobre o objeto considerado.
Pode-se até ir mais longe – em Física clássica – e imaginar que,
aperfeiçoando-se os aparelhos de medir, tornamos esta perturbação
cada vez menor, o que modificará cada vez menos o fenômeno
considerado.
Por uma passagem contínua ao limite, poderemos então conhecer
experimentalmente um fenômeno sem que nossas medidas tenham
alterado seu desenvolvimento.

Dizer, por exemplo, que um elétron mantém uma trajetória
determinada, pode ter, na hipótese acima, um sentido experimental
bem definido.
Resumindo, em Física clássica, admite-se que a perturbação
introduzida pelo aparelho de medir, pode ser considerado desprezível
e é precisamente neste ponto que a Mecânica Quântica nos obriga
a mudar nosso ponto de vista!
Com efeito, esta Mecânica estuda o movimento das menores
partículas da matéria, elétrons, prótons, etc.
Ou, em última análise, os aparelhos de medir, em si, são
constituídos por partículas do mesmo gênero; iremos medir portanto
certos elementos com outros elementos do mesmo gênero e grandeza
e não espanta portanto que, nestas condições, as perturbações não
sejam , necessariamente, desprezíveis!
Este tipo de raciocínio não é convincente a não ser quando aplicado no
domínio das partículas elementares; a priori pode-se imaginar que seja
possível conduzir as medições de tal modo que todas as perturbações
tornem-se desprezíveis quando se atinge o limite.
Isso, no entanto, pressupõe uma condição essencial para passagem ao
limite, a saber, a continuidade.
Ora, se esta continuidade existe em Física clássica, ela não existe em
Mecânica Quântica: uma certa grandeza mecânica, o movimento,
varia por saltos: seu valor é sempre um múltiplo inteiro da constante
h de Planck.
A passagem ao limite é portanto impossível( em geral), e segue-se que
toda a medição introduz, necessariamente uma perturbação ainda
que imprevisível no fenômeno estudado.
Não podemos mais considerar o fenômeno em si mesmo,
independente do instrumento de medição, o que nos leva a uma outra
dificuldade ou seja, aquela de determinar a fronteira entre o sitema de
medição e o sistema estudado.
Estas perturbações se traduzem por uma indeterminação essencial em
nossas medições baseadas,( cifradas), em qualquer forma, pelo valor
da constante de Planck.
A maneira de como elas, as perturbações, aparecem efetivamente é
muito rica até mesmo em conclusões filosóficas; examinemo-as no

caso simples do movimento de uma partícula livre, um elétron, por
exemplo.
Dirijamos, pois, um feixe de elétrons perpendicularmente a um écran
que tenha um orifício de diâmetro d milimetros.
Os elétrons que passam pelo orifício terão assim uma posição
aproximadamente determinada; teremos pois “medido” sua posição
com aproximação de d milímetros.
Esta medição- pela passagem no orifício – perturbou o fenômeno
“movimento de um elétron” e a mecânica ondulatória nos ensina de
que modo o fez.
A velocidade de um elétron – ou mais exatamente, a quantidade de
movimento que lhe é proporcional – foi afetada de tal maneira que nos
não saberemos daqui para diante medir sua componente ao longo do
écran à mais de h/d, aproximadamente, qualquer que seja o método
empregado.
Nós podemos diminuir o diâmetro do orifício d e reduzir assim a
incerteza sobre a posição do elétron; mas então a indeterminação da
velocidade de h/d, aumentará.
De um modo geral, d e p sendo as indeterminações com as quais
nossas medições fixam respectivamente a posição e a quantidade de
movimento do elétron, o produto p.d é sempre da mesma ordem de
grandeza que h, resultado conhecido como Relação de
Indeterminação de Heinsemberg.
Do ponto de vista geral que nos preocupa neste trabalho, a
credibilidade da precisão de uma medição não se obtém senão em
detrimento da exatidão com a qual se pode medir um outro elemento
do fenômeno considerado.
No limite, se medirmos exatamente um dos elementos do fenômeno,
nos estaremos seguros de que a perturbação foi de tal monta que um
outro elemento resta completa e essencialmente indeterminado.
A constante de Planck introduziu pois uma indeterminação essencial:
as grandezas cujas precisões variam em sentido inverso ( como por
exemplo p e d) chamam-se grandezas canonicamente conjugadas.
Nos não podemos conhecer simultaneamente duas grandezas
conjugadas se dermos ao termo”conhecer”o seu único sentido
razoável em Física, qual seja, “medir”.

Segundo esta concepção, o conhecimento dos fenômenos não pode ser
ao mesmo tempo exato e completo: ou bem nós percebemos todos os
aspectos mas de modo impreciso, ou percebemos um em todos os eus
detalhes mas isto mesmo nos impedirá de distinguir um outro aspecto
do fenômeno que chamamos complementar do precedente.
No fundo, não há nada de chocante em admitir, em princípio, esta
dualidade eis que nossa experiência quotidiana no-la apresenta de mil
maneiras: nós não podemos, por exemplo, perceber numa olhada, uma
face de frente e de perfil; ou ainda, enquanto se observa uma
preparação ao microscópio sobre um plano de corte determinado,
todos os outros planos são, necessariamente indeterminados e
inobserváveis.
Voltemos ao exemplo precedente.
Seja um fluxo de elétrons incidindo perpendicularmente sobre um
écran com um orifício.
Um raciocínio simples mostra que, após a passagem pelo orifício, as
velocidades não serão mais normais ao écran mas desabrocham em
leque, tanto mais aberto quanto o orifício seja menor.
Passemos ao limite de um orifício infinitamente pequeno.
Assim que, antes do écran, ali onde a posição do elétron pode ser um
ponto qualquer do espaço, as velocidades são todas paralelas; depois
da passagem pelo écran ou seja depois de estar fixada a posição da
partícula, obrigada por nós a passar pelo orifício, as velocidades
preenchem todo o espaço e a propagação dos elétrons se faz de modo
radial a partir do orifício, como se este fosse uma fonte, emitindo uma
onda esférica.
O exemplo dado refere-se a um fluxo de elétrons mas a propagação
por ondas esféricas tem lugar mesmo se um só elétron é lançado.
Temos pois no écran, antes e depois, dois aspectos complementares do
mesmo fenômeno, o aspecto corpuscular e o aspecto ondulatório.
A luz se nos apresenta o mais comumente como um fenômeno
ondulatório mas sabemos ser suficiente coloca-la sob certas condições
experimentais para que apareçam seus caracteres corpusculares.
Um elétron é considerado essencialmente como um corpúsculo,
entretanto basta faze-lo passar por um orifício suficientemente
pequeno para constatar, do outro lado do écran o aparecimento de
franjas de difração, prova irrefutável duma propagação ondulatória.

Do ponto de vista filosófico, uma nova noção se libera cuja
importância ultrapassa o quadro de sua aplicação, a noção de
complementaridade, diferente daquela da exclusão.
Ou seja, alguma coisa que até aqui considerávamos exclusiva em
relação à outra, pode coexistir complementarmente.
Paralelamente com o aparecimento de novas noções, certas noções
clássicas perdem toda significação.
É assim ,por exemplo, a noção de “trajetória de um elétron”.
Para poder seguir um elétron em sua trajetória, seria preciso fixar , por
medições, a posição dos seus diversos pontos.
Ora, a primeira medição perturba radicalmente o movimento e a
“trajetória” desaparece.
Não é mais possível fixar o que, em mecânica clássica, se chama
“as posições sucessivas de um ponto em sua trajetória” e esta
constatação é prenhe de conseqüências ponderáveis.
A nova mecânica nos dá, em bloco, todas as posições possíveis do
ponto ou, de um modo geral, todos os valores possíveis de uma
grandeza mensurável qualquer; ela acrescenta, todavia, a
probabilidade de que uma medição determinada forneça,
precisamente tal ou tais valores entre aqueles que ela designou como
possíveis.
As possibilidades aparecem aqui de um modo inteiramente diferente
daqueles da teoria clássica. De fato, como conseqüência das
concepções fundamentais é o problema da casualidade e do
determinismo dos fenômenos naturais que está em jogo.
Laplace formulou de um modo surpreendente a concepção do
determinismo absoluto que é o da mecânica clássica:
“Nós devemos portanto visualizar o estado presente do Universo
como o efeito de seu estado anterior e como a causa do que irá se
seguir. Uma inteligência que em um estante determinado,
conhecesse todas as forças que animam a natureza e a situação
respectiva dos seres que a compõe, e se fosse tão vasta que lhe
permitisse a análise destes dados, incluiria na mesma fórmula os
movimentos dos maiores corpos do Universo e também aqueles
dos átomos mais leves; nada seria incerto para ela e o futuro,
como o passado, estaria presente aos seus olhos”.
A situação mudou radicalmente com a mecânica quântica.

Retomando o exemplo simples antes mencionado, seria suficiente, em
mecânica clássica, de dar a posição inicial de um ponto material e a lei
do seu movimento ( sob a forma de uma equação diferencial) para se
poder daí deduzir sua trajetória ou seja, suas posições sucessivas que
estariam então perfeitamente determinadas.
Ora, em mecânica quântica, não é mais possível ligar entre si as
“posições sucessivas” para constituírem uma curva real que seria
seguida pelo elétron; em particular não é possível afirmar que tal
posição é posterior a uma posição inicial àquela que será conduzida
através de uma série continua de posições intermediárias, permitindo
estabelecer entre elas uma ordem de sucessão. Estando fixada uma
posição inicial, a posição do ponto num momento ulterior não é
determinada; toda uma série de posições são possíveis entre aquelas
que tenham uma maior probabilidade.
Neste sentido, a mecânica quântica é indeterminista, ou melhor,
apresenta um determinismo estatístico, probabilístico.
Certas teorias clássicas, a teoria cinética dos gases, por exemplo,
fornecem também seus resultados unicamente sob a forma de
probabilidades mas diferem na sua essência da mecânica quântica. Na
verdade, o aparecimento das probabilidades não é devido, neste caso,
senão à intervenção dos grandes números e à ignorância em que nos
achávamos no que concerne aos detalhes microscópicos dos
fenômenos.
Os movimentos das moléculas gasosas obedecem à leis precisas que
são aquelas da mecânica clássica; existe sempre nestas teorias
estatísticas uma determinação sub-jacente, mesmo que se suponha
seja o acaso puro que governa os movimentos elementares- porque o
acaso puro, ou seja, a ausência de qualquer lei, é também uma lei
perfeitamente determinada.
Nada disto tem a ver com a mecânica quântica: trata-se aqui de um
indeterminismo essencial que tem sua origem, ao fim das contas, na
introdução da descontinuidade do quantum h e em uma análise mais
acurada do que se deve chamar de grandeza observável.
Cabe evitar, quando se examina estas questões, uma confusão que
muitas vezes se faz entre determinismo e casualidade. Antes da
mecânica quântica, o determinismo absoluto de Laplace permitia-lhe
examinar os dois problemas simultaneamente. A mecânica quântica é

indeterminista mas isto não significa que ela seja causal. Ë de todo
evidente que ela não pode ser causal porque ela pretende prever a
evolução dos fenômenos naturais e que a própria noção da lei natural
se esvanecerá se abandonarmos a causalidade.
Ela prevê os fenômenos na medida em que é possível faze-lo e mostra
precisamente quais são os limites desta possibilidade. Ela sobrepõe ao
determinismo absoluto um determinismo estatístico que não permite
senão enunciados de possibilidades.
Há mais: a argumentação precedente concerne unicamente a
grandezas observáveis, derivadas de fenômenos naturais, ou seja,
aqueles para os quais é necessário medir para descrever o fenômeno.
Podemos, no entanto, imaginar a existência de grandezas fisicamente
inobserváveis, ligados de um ou de outro modo aos fenômenos
considerados; suas leis de variação não são naturalmente submissas às
restrições precedentes: não estamos mais no plano da Física mas no
plano matemático onde a medida não intervém mais e onde nada nos
impede de criarmos as hipóteses que julgarmos úteis.
Circunstâncias paralelas se encontram precisamente em mecânica
ondulatória.
O “estado”de um sistema físico é ali definido por uma função ,
chamada função de onda ( ondulatória), grandeza não observável.
Ora, a evolução no tempo desta função, é definida por uma equação
diferencial, ou seja que ela se desenvolve segundo as leis do
determinismo o mais estrito.
Podemos dizer pois que a mecânica ondulatória descreve a realidade
segundo dois planos; de uma parte o plano dos estados do sistema ,
plano matemático, ideal, tratando de grandezas não mensuráveis; e de
outra parte o plano das grandezas observáveis, plano físico no qual se
reúnem grandezas acessíveis à experiência, que, em última análise,
podem ser mensuradas e descrevem pois, fisicamente, o fenômeno
considerado.
Os dois planos não se confundem e nem se sobrepõe : a separação é
introduzida pelo ato da própria mensuração.
No plano físico não há determinismo; entre duas mensurações que
determinam dois acontecimentos do plano físico, o “nexo causal”
passa pelo plano matemático no qual as grandezas( inobserváveis)

ligadas aos fenômenos seguem leis continuas e estritamente
determinadas.
Em uma palavra: ou bem nós descrevemos os fenômenos no espaço
tempo, no plano físico, no qual nós os observamos efetivamente e
então não há determinismo mas sim relações de incerteza ou nós nos
colocamos no plano matemático e obtemos uma imagem teórica, um
esquema matemático no qual pode-se falar em “causalidade e
determinismo” absolutos.
A diferença com a teoria clássica tem a ver com o fato que esta
permite a descrição dos fenômenos no espaço tempo e determinismo
absoluto.
Como se vê, a distinção entre grandezas observáveis no espaço tempo
e grandezas essencialmente inobserváveis é muito importante.
A fronteira entre as duas categorias está perfeitamente delineada no
estado atual da mecânica quântica mas não se pode afirmar, a priori,
que este traçado seja definitivo.
De fato, ensaios têm sido tentados recentemente para remover esta
fronteira e toda a estrutura da mecânica quântica restaria modificada
mas até ao presente momento, os resultados obtidos não deixam
prever o rumo que tomará o desenvolvimento futuro.
Enfim, cabe mencionar um último ponto de contato entre a Filosofia e
este ramo do conhecimento.
Examinamos as modificações profundas que a mecânica quântica traz
à descrição dos fenômenos no espaço- tempo.
Em verdade, esta noção de espaço tempo é também uma noção de
nossa escala e a questão que se põe é inquirir o que ela virá a ser e
qual o sentido que deve-se lhe atribuir no que concerne ao
infinitamente pequeno.
O problema ainda não foi estudado a fundo mas uma tentativa
meritória deve ser assinalada. Partindo da introdução de
descontinuidades em mecânica e mais particularmente de certas
teorias que fazem crer a existência de um comprimento mínimo no
Universo, uma hipótese foi formulada segundo a qual o espaço
mesmo, poderia ser descontínuo.
O problema está posto e será necessário resolvê-lo; qualquer que seja
a solução, sem dúvida alguma irá enriquecer a Filosofia.

Os eventuais pontos aflorados nas linhas precedentes mostram a a
medida em que a nova Física Quântica caminha paralelamente à
Filosofia.
Melhor ainda: os domínios respectivos vertem uns sobre os outros e,
em certos momentos, as duas disciplinas se confundem; raramente ,
como agora, a Física mereceu o nome que outrora lhe foi atribuído:
“Filosofia Natural”. TRADUZIDA em Maio de 2000.

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